domingo, 14 de setembro de 2008

Artigo no Público


Gastronomia molecular 19.06.2008
Gostava de provar um cristal de vento, um prato abstracto ou um cubo de Rubik feito com lulas e gelatina? Estas e muitas outras ideias saíram da cabeça do francês Hervé This, químico e pioneiro da gastronomia molecular - a ciência que estuda os processos culinários e que grandes chefes no mundo inteiro já aplicam nas suas cozinhas Texto de Ana Gerschenfeld e fotos de Rui Gaudêncio Na mesa há tubos de ensaio, um frasco com álcool, um de sumo de fruta, várias taças, duas batedeiras de varas, copos, colheres, uma garrafa de óleo, um jarro de água e um montinho de ovos. Um misto de laboratório de química e de bancada de cozinha. Hervé This parte um ovo, deita a clara numa taça e começa a bater vigorosamente a "mistura de água e proteínas" com as duas batedeiras ("quanto maior o número de varas, melhor"). "Estamos a injectar ar nesta clara de ovo. Vejam que estranho: a clara transforma-se em espuma e passa de amarela a branca". A seguir, junta-lhe óleo ("triglicéridos", precisa), continuando a bater, "para dividir o óleo em finas gotículas". "Agora temos uma emulsão." Verte-a num copo e coloca-a num microondas: "Vamos aquecê-la. Como a água vai ferver, a emulsão vai expandir-se". Mal isso acontece, abre a porta do forno e sacode o copo para retirar o conteúdo: "Agora temos uma pasta sólida de óleo; não sabe a nada, mas para lhe dar sabor, poderíamos ter acrescentado cogumelos ou alho - ou usado azeite em vez de óleo. Chamo a isto um Gibbs, em homenagem ao grande cientista americano." Foi a primeira das muitas demonstrações que anteontem acompanharam a palestra de duas horas que Hervé This, pioneiro da "gastronomia molecular", deu no Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa. Há 20 anos, This e Nicholas Kurti (1908-1998), físico de origem húngara que trabalhava em Oxford, baptizaram assim a ciência por detrás dos processos culinários. A abordagem ganhou força no mundo inteiro e produtos químicos como o azoto líquido, a metilcelulose, o alginato ou o ácido tartárico tornaram-se parte do rol de ingredientes que muitos chefes de renome não hesitam hoje em utilizar. This acha que a sua ciência, ao descobrir novos ingredientes, novos utensílios e novas maneiras de cozinhar, pode contribuir de forma essencial para a arte culinária. Mas faz logo uma ressalva: "Nenhum chefe jamais fará gastronomia molecular na sua cozinha. O que eles fazem é cozinhar!" Ou seja, This faz ciência dura, e a prática culinária que hoje está a difundir-se é uma aplicação dessa ciência dura. Aliás, como dirá This mais tarde ao P2, "eu interesso-me pela química. Os alimentos são produtos químicos complexos e é por isso que são interessantes." Do seu laboratório, cujos efectivos variam entre "cinco a 20 pessoas", já saiu uma tese de doutoramento sobre o caldo de cenoura - e no final do mês, vai sair outra sobre a cor do feijão verde. A equipa de This dedica-se portanto a analisar os processos culinários pelos métodos da química e da física experimental, tentando perceber o que acontece ao nível molecular quando as pessoas - que tanto podem ser a nossa avó como um grande chefe - cozinham. "É possível descrever a comida na cozinha com fórmulas e operações", salienta This. E um dia - por que não? - vamos poder introduzir num computador a fórmula de um molho, por exemplo, e obter um molho perfeito carregando num botão. Mas, antes de mais, é preciso separar o trigo do joio nas dicas de cozinha transmitidas ao longo dos séculos. This e a sua equipa recolheram cerca de 25 mil dicas e testaram a sua validade. "Há chefes franceses com três estrelas [nos guias Michelin] que já escreveram que para fazer uma maionese, é preciso que o ovo e o óleo estejam à mesma temperatura", exemplifica. "Ou que, quando se muda o sentido de rotação da batedeira de varas, a maionese não resulta". Ambas estas 'dicas' são falsas. Tão falsas como "a idiotice que consiste em pensar que quando uma mulher tem o período, não podemos fazer maionese ao pé dela". Comida artificial? Uma das coisas que This gosta de salientar é a artificialidade da nova culinária. "Carne artificial? Conseguimos criá-la no laboratório em cinco minutos: um aglomerado de tubos cheios de proteína." E já agora, laranjas artificiais, feitas de minúsculos saquinhos de gel cheios de sumo de laranja - e até ovos de peixe falsos. "Odeio produtos naturais!", clama This, tirando prazer da provocação. "Hoje em dia, para além dos peixes, não existem alimentos naturais. E como eles tendem a desaparecer..." O açúcar é o mais artificial que se possa imaginar. Sendo assim, por que não ir mais longe? "A fruta e os legumes artificiais vão provavelmente tornar-se muito importantes no futuro", diz This. Pode-se objectar que não vale a pena fazer - This prefere a palavra "construir" - uma laranja artificial, visto que já existem laranjas naturais. Mas o investigador tem resposta para tudo: "Quando escolhemos uma laranja, das duas uma, ou é boa ou é má." Ao passo que, quando construímos uma laranja, podemos dar-lhe o sabor que queremos. "Um bom cozinheiro consegue condimentar o sumo de laranja de forma a dar à laranja artificial [o nome é "conglomelo" de laranja] o sabor e a consistência exacta que pretende." Já agora, This não é apenas um teórico da gastronomia. "Em casa, quem cozinha sou eu", diz ao P2. Porquê? "Porque o resultado é muito melhor!", responde com um amplo sorriso. E é um grande adepto da cozinha a baixa temperatura. "Por exemplo, no supermercado compro carne de vaca a quatro euros o quilo, que normalmente é muito dura. Mas se a cozinhar no forno a 70 graus centígrados durante muito tempo, ela fica tenra e deliciosa." Quanto é muito tempo? "Hoje à noite, quando chegar a casa, vou comer uma carne que esteve a assar durante 72 horas." Uma das preocupações de This é o dinheiro excessivo que todos gastam na cozinha, tanto nos ingredientes utilizados como na energia ("um fogão a gás não faz sentido, perde-se 80 por cento da energia"). A este desperdício, contrapõe métodos mais racionais para obter os mesmos - ou melhores - resultados. O que, numa altura em que o preço dos alimentos está a disparar, pode fazer muito sentido... Mas não é apenas em família, com a mulher e os dois filhos, que This gosta de pôr à prova a sua visão dos prazeres da mesa. Há vários anos que ele e um dos maiores cozinheiros franceses, Pierre Gagnaire, jogam um singelo jogo. Uma vez por mês, This lança, no site de Gagnaire, em www.pierre-gagnaire.com/francais/cdthis.htm, uma ideia de inovação culinária. Ao desafio, Gagnaire responde, passados uns tempos (por vezes vários meses), com uma ou várias receitas da sua invenção. Molécula a Molécula O resultado são coisas como os "cristais de vento", que são uma espécie de suspiros de limão - provavelmente os suspiros mais leves do mundo, uma vez que se baseiam no facto de que, "com apenas uma clara de ovo, é possível obter um metro cúbico de claras em castelo", explica This. Há também vários pratos "abstractos" - ou seja "que não sabem a nada em particular". Ou antes, explica, "que sabem muito bem, mas onde não é possível identificar nenhum dos ingredientes que entraram na sua confecção". "Mantenho esta colaboração", salienta, "porque estou convencido de que quando as pessoas muito ricas começarem a pedir este tipo de comida, todos vão querer." This diz que não pretende que a cozinha molecular substitua um dia a cozinha tradicional; as duas coisas devem e vão continuar a existir juntas. "O meu sonho é que a cozinha molecular se torne omnipresente, que se junte à cozinha tradicional." Para "depois de amanhã", contudo, o sonho é que a cozinha passe cada vez mais a ser construída "molécula a molécula". "Quando deitamos uma cenoura numa panela, é como se estivéssemos a tocar um acorde no piano, é uma mistura complexa de notas. Eu sonho com uma cozinha construída nota a nota." Seja por via molecular ou tradicional, cozinhar é sobretudo um acto de amor. "Há três componentes, a técnica, a arte e o amor. Mas a questão fundamental na cozinha é a do amor: como dizer 'amo-te' através da comida? Será que a ciência pode ajudar-nos a dizer 'amo-te'? Não temos aulas de amor nas escolas de química, mas eu defendo que deveríamos ter aulas de amor nas escolas de culinária." Quem diz mensagem de amor culinária está a falar do prazer que um bom cozinheiro consegue proporcionar aos seus comensais. "É possível determinar a quantidade de amor que existe num prato - e a neurobiologia poderá contribuir para nos esclarecer sobre esta matéria", salienta This. Mas os grandes chefes já sabem isso intuitivamente. Sabem, por exemplo, que quando comemos em grupo, a comida é melhor do que quando comemos sozinhos. E também que, quando se juntam em torno de uma mesa vários inimigos, mesmo a melhor das refeições sabe mal. E que uma refeição não é nunca uma linha recta entre dois pontos, entre o prato cheio e o prato vazio. É uma viagem a um universo de sabores, de temperaturas, de cheiros, de texturas, cheia de desvios e de surpresas. "Como a viagem de Ulisses entre Tróia e Ítaca."


Seminários 'C ao cubo'
De dois em dois meses, já a partir de Setembro
Desde o ano 2000, Hervé This tem promovido, em França, seminários mensais de gastronomia molecular que reúnem cientistas, cozinheiros e o público em geral. E agora, em Portugal, um grupo de cientistas e de grandes chefes de cozinha portugueses decidiu seguir o exemplo e lançar o projecto C3 ("C ao cubo"): Cozinha x Ciência x Colaboração. Os seminários, anunciou ontem no Pavilhão do Conhecimento o chefe Luís Baena, no fim do encontro com This, serão bi-mensais (sempre na terceira quarta-feira de cada mês ímpar) e durarão entre duas e três horas. O primeiro, já agendado para 17 de Setembro pelas 18 horas e aberto a todos os interessados, decorrerá na sede da Associação de Cozinheiros Profissionais de Portugal, em Lisboa, e terá como tema a batata. A.G.

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