sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Batata, alimento popular, barato e eficaz

A batata concorre com o arroz no campeonato do alimento mais popular em todo o mundo. Nem sempre foi assim. Quando chegou à Europa, vinda da América, no século XVI, a batata foi recebida com desconfiança e hostilidade. Suspeita de provocar a lepra, foi alimento de porcos e prisioneiros de guerra. Só as fomes dos séculos XVIII e XIX e uma série de personalidades lúcidas e teimosas, como o francês Parmentier, fizeram da batata o alimento popular que é hoje.

David Lopes Ramos

Publicado na Revista de Vinhos

As batatas, que consideramos obrigatórias na nossa dieta alimentar, não tiveram vida fácil na Europa até alcançar tal estatuto. O celebrado puré de Joël Robuchon, criação de uma singeleza genial, que pode ser apreciado nos seus restaurantes de Paris, “L’Atelier” e “La Table”, é confeccionado com um produto que, à sua chegada à Europa, trazido da América do Sul pelos colonizadores espanhóis, era considerado portador da lepra e bom para alimentar porcos.
A batata chegou do Peru, onde era consumida há milhares de anos pelas populações do altiplano andino, nos finais do século XVI, na bagagem de Pedro de Cieça, adjunto do conquistador Francisco Pizarro. Em 1588, ele entregou alguns tubérculos de “papas” (“patatas”, no Peru, são as batatas doces) aos reis espanhóis. Estes ofereceram as batatas ao Papa, que, por sua vez, as mandou ao botânico franco-vienense Pierre de L’Écluse (Clusius), que as plantou num terreno do Núncio Apostólico Bononi, em Verceil-les-Champs. Clusius, que também tinha jeito para a pintura, reproduziu o resultado do cultivo em soberbas estampas, segundo informa Maguelonne Toussaint-Samat, na sua monumental “Histoire Naturelle & Morale de la Nourriture” (Bordas Cultures, Paris 1987).
Não sabendo que nome dar à sua obra para a catalogar, como era de regra, Clusius chamou-lhe “taratufi” (trufa pequena, dada a semelhança com este delicioso cogumelo, que também cresce debaixo da terra). O Papa leu “tartufoli”, os alemães pronunciaram “kartofel”, os russos “kartopfel”, os franceses “tartouste” ou “cartoufle”. Na Grã-Bretanha, tubérculos semelhantes trazidos da Virgínia, América do Norte, por sir Walter Raleigh, foram recebidos com indiferença pelos botânicos britânicos. Soldados britânicos e espanhóis dos corpos expedicionários às Américas confundiram a batata comum com a batata doce (“patata”). Os primeiros chamaram a esta pequena “pedra comestível” “potato”, os espanhóis “patata”. Com as batatas chegaram também, entre outros, o milho, ao princípio igualmente alimento para animais, o tomate, recebido com grande desconfiança de ser venenoso, o chocolate e o peru, estes bem acolhidos. Nós, portugueses, também metemos o bedelho nesta questão do nome. Na Madeira, a batata comum chama-se semilha; a batata doce é batata sem mais qualificativos.
Missionários de Sevilha, que tinham divulgado a fé cristã entre os habitantes do altiplano andino, trouxeram, em 1573, no regresso à Andaluzia, “papas” como recordação. Plantaram-nas, colheram-nas e conseguiram que alguns doentes pobres e famintos comecem um puré feito com elas. Não morreram. O mesmo sucedeu, mais tarde, a Antoine-Auguste Parmentier, farmacêutico militar francês, feito prisioneiro na Renânia do Norte-Vestefália, durante a Guerra dos Sete Anos (1756-1763). Os locais alimentavam os porcos com “kartofel” e consideraram tal dieta adequada para os prisioneiros franceses. Parmentier verificou que a transmissão da lepra era uma treta. De regresso a casa, tratou de popularizar o consumo da batata, no que foi ajudado pela instabilidade política e consequente penúria, que se seguiram à Revolução Francesa (1789). Antes, Maria Antonieta também dera uma ajuda ao enfeitar-se com a flor da batateira, bem como o rei Luís XVI, este ao mandar fazer um batatal na planície de Sablons, em Neuilly, onde Luís XV costumava passar a revista ás tropas em parada. Mandou os soldados guardar a plantação, o que suscitou a curiosidade e cobiça dos populares. À noite, as sentinelas fingiam-se distraídas e os sacos enchiam-se de batatas. Um século mais tarde, 26 de Março/28 de Maio de 1871, durante a Comuna de Paris (em 21 Ventôse An III), foi decretado que os jardins das Tulherias fossem reconvertidos em batatais.
Foi, no entanto, a fome, em França e noutros países europeus, como a Grã-Bretanha e Irlanda, que mais contribuiu para a popularidade da batata como alimento barato e eficaz. Tinha um inconveniente, como não possui glúten, não se pode fazer pão com ela. No século XIX, uma praga dizimou os batatais nas ilhas britânicas, com incidência particular na Irlanda, onde o tubérculo era a base da alimentação. Morreu muita gente. Dos sobreviventes, cerca de metade emigrou para a América do Norte. O antepassado do Presidente John Kennedy encontrava-se entre eles. A batata é um alimento muito político e continua, séculos passados desde a sua chegada à Europa, a influenciar o rumo do mundo...

A batata frita conquista o mundo

Na planta da batata, o que se come são os tubérculos, que crescem debaixo da terra. É na sua polpa que se acumulam as reservas de amido. Conta-se que, no regresso de uma longa incursão marítima, William Raleigh trouxe uma batata que ofereceu à rainha Isabel I. Semeada nos jardins reais, cresceu e foi colhida. O cozinheiro da Corte, que nunca vira uma batata, fez uma salada com as folhas da planta. A rainha provou, não gostou e mandou chamar Raleigh. Este explicou ao cozinheiro que, na batateira, o que se comia eram os tubérculos...
Durante milhares de anos, nos países mediterrânicos e nos montanhosos, o grito do povo “Queremos pão!” era satisfeito com pão confeccionado com cereais pobres, favas, bolotas e, sobretudo, castanhas. Maguelonne Toussaint-Samat informa que ainda se encontram vestígios desse pão de castanhas, uma espécie de “flan”, nos Balcãs, Centro de Itália, Sardenha, Sicília, Córsega, Pirinéus Orientais. E, acrescento eu, em certas aldeias portuguesaas de Trás-os-Montes. O caldo de castanhas com leite alimentou gerações e gerações de europeus. Até que chegaram as batatas, nas condições acima descritas.
Em 1853, um outro acontecimento fortuito levou à consagração universal da batata, com a descoberta a batata frita. O feito é atribuído a um cozinheiro indo-americano chamado George Crum, de um hotel da moda de Saratoga Springs, Estado de Nova Iorque, EUA. Havia um cliente, Cornelius Venderbilt, magnate ferroviário, que era um tanto niquento. Para ele, nunca o corte das batatas era suficientemente fino e as devoluções à cozinha eram constantes. George Crum fartou-se, cortou as batatas às rodelas finas passou-as por azeite muito quente e fritou-as até que ficassem douradas e estaladiças. Venderbilt adorou e estava inventado um dos maiores êxitos culinários de sempre. São milhões e milhões de sacos de batatas fritas que se vendem por ano em todo o mundo e os jovens são os principais consumidores de “crisps”.
A 2ª Guerra Mundial, com a necessidade da existência de produtos prontos para uso, reclamada pelas intendências militares, provocou a transformação industrial das batatas. Daí as batatas fritas pré-cozinhadas, as “chips” e os purés. Em 1977, mais de metade das colheitas norte-americanas de batatas era transformada em flocos desidratados para a confecção de puré instantâneo. A este devem juntar-se as “gaufrettes”, as batatas-palha, com sabor a bacon, paprika, piza, etc., etc.. E as “dauphine”, croquetes congelados e pré-cozidas em água e as congeladas para fritar. Milhões de restaurantes, colectividades, supermercados, consumidores de todo o mundo usam-nas no seu dia a dia. No mundo inteiro produzem-se actualmente uns 300 milhões de toneladas/ano, com a China à cabeça. É obra!

Kennebec, Arran Banner, Ratte...

No Peru há milhares — fala-se em três mil! — variedades de batatas. Embora não sendo todas comestíveis, há mais de mil e quinhentas que entram na dieta alimentar de povos de todo o mundo. O critério mais comum de classificação das variedades de batatas é o da cor da pele: vermelha, amarela e branca, a que se junta a cor da polpa: amarela ou branca. Em Portugal, as batatas mais conhecidas e consumidas são as seguintes:
•Kennebec: tem a pele branca amarelada, polpa branca, olhos à superfície, de tubérculos grandes, é semitemporã. É a nossa Canibeque.
•Arran Banner: de pele amarela clara e polpa branca, so tubérculos são redondos achatados, os olhos ligeriramente afundados. É a nossa Rambana.
•Desirée: pele vermelha lisa, polpa amarela, tubérculos grandes e ovais compridos, boas para cozer e fritar ou assar no forno.
•Bintje: pele e polpa amarelas, pele lisa, olhos superficiais, semitemporã, tubérculos ovais compridos, grandes, boa tanto para fritar como para cozer, sendo um pouco farinhenta. É talvez a variedade mais cultivada em todo o mundo.
•Ratte: é uma batata pequena, de pele escura, longa e nodosa, de polpa firme, tem uma sugestão de noz no sabor que a tornam uma das variedades preferidas dos chefes de cozinha criativos. Em Portugal, é cultivada por alguns adeptos da agricultura biológica.

A batata faz bem à saúde

O valor medicinal da batata é multiplo: protege o fígado e as funções da vesícula biliar; é um excelente estimulante digestivo, é diurética e, por isso, útil para ajudar a resolver os problemas de retenção de líquidos; ajuda a reduzir o colesterol e as taxas de gordura no sangue; útil para os diabéticos devido à insulina que contém, substância que limita a concentração de açúcar no sangue durante as refeições.
A composição química da batata, inclui féculas que se convertem em energia, vitamina C, que é fundamental para a saúde em geral, a cicatrização das feridas e o vigor das gengivas, vitamina B1, fundamental para a saúde dos nervos e músculos, vitamina B6, necessária à produção de proteínas e à prevenção de infecções, além de ser uma fonte excepcional de potássio, que é um regulador da tensão arterial.
A batata contém 77 por cento de água; 18 por cento de hidratos de carbono; dois por cento de fibra; 0,2 por cento de lípidos; 2,5 por cento de proteínas; 7mg/100 g de sódio; 430mg/100g de potássio; 52 mg/100g de fósforo; 9mg/100g de cálcio; 0,6mg/100 de ferro; 2mg/100g de vitamina A2; 18mg/100g de vitamina C; 0,1mg/100g de vitamina B1; 0,04mg/100g de vitamina B2; 12 microgramas/100g de vitamina B3.

Batatas com molho cru

in “Coisas da Terra e do Mar — sabores da cozinha algarvia”, Vila, edição do autor

Batatas de rebolão

“As batatas sáidas da terra são cozidas em água e sal e molhadas em azeite à medida que vão sendo comidas.
“O pão era o seu único companheiro.
“O conduto — bacalhau, sardas ou chicharro — chegou mais tarde, mas foi bem recebido e alindado com pimenta e colorau”.

in “Valores da nossa terra — Manique do Intendente — Azambuja — Odores & Paladares”, Cid Simões, 1ª edição Maio de 1998

As batatas enfoladas da “Ramalhal figura”

Um dia, Paulo Plantier, autor da obra O Cozinheiro dos Cozinheiros (1ª edição de 1870), decidiu organizar um livro a que deu o título de Receitas para gastrónomos requintados — inventadas e executadas por distintos artistas e escritores portugueses. Ramalho Ortigão (Porto, 1836-Lisboa, 1915) foi um deles. O autor de “As Praias de Portugal” brindou os seus contemporâneos com o texto “Modo de frigir batatas”, que é mais nem menos que a receita das batatas enfoladas. Muitos, a partir deste texto, atribuíram ao escritor português a autoria da receita. Nada de mais errado. As batatas enfoladas nasceram em França, no dia 27 de Agosto de 1837, durante o banquete de inauguração da primeira linha férrea Paris-Saint-Germain. O comboio atrasou-se e o cozinheiro teve que interromper a fritura das batatas. Estas arrefeceram e, quando o cozinheiro recomeçou a operação, as batatas enfolaram e a carne de vaca assada ganhou um acompanhamento magnífico. Segue-se um trecho do texto de Ramalho Ortigão, com a receita:
“Saibam todos os meus adversários o modo por que eu procedo quando intento oferecer aos meus amigos esse deliciosa manjar das batatas fritas. Está já agora decidido... Não! não morrerás comigo, ó doce, ó bom, ó divino segredo!
“Apercebo-me mandando vir de Sintra a manteiga mais fresca, e compro as melhores batatas que encontro. Depois disto vou para a cozinha e sento-me à banca das operações. Descasco as batatas cruas, aparo-as escrupulosamente e parto-as em fatias de meio dedo de grossura. Em cima do lume muito brando, quase de um rescaldo, coloco a minha frigideira de porcelana, lanço-lhe um bocadinho de manteiga e vou alourando pouco a pouco, branda e sucessivamente, as minhas rodelas. É uma operação para que se não quer pressa, mas dedicação, mimo e paciência.
“Depois de meio fritas as batatas, vou-as retirando e pondo à janela ao ar. Terminado este primeiro serviço, faço atear uma forte fogueira e reponho no lume a frigideira com um grande naco de manteiga. Quando esta, derretida, principia a saltar em bolhas de fervura, lanço-lhe outra vez as batatas afogadas na manteiga em ebulição, empolam então pronta, rápida, portentosamente e cada uma das rodelas toma logo uma forma esférica. É admirável, é quase miraculoso o resultado deste processo. A batata fica fofa, amanteigada, farinhenta, inchada, leve e mole como uma filhó ou como um sonho!”

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